Tubarões Azuis, a Diáspora e a Caboverdeanidade [texto de David Leite] | Dai Varela

15 de outubro de 2013

Tubarões Azuis, a Diáspora e a Caboverdeanidade [texto de David Leite]


1. Quando a alma não é pequena


Tubarões Azuis! Nenhuma outra selecção nacional deu tanto que falar na última Taça de África das Nações. De proeza em façanha foi somando e seguindo até que... até  que esbarrou num clamoroso erro de regulamento que nos lixou na corrida para a Copa do Mundo! E trémulos ficámos nós, Povo das ilhas, que fizemos tremer colossos na África do Sul! Incrédulos, como se o mundo nos tivesse desabado sobre a cabeça!


Mas isso é outra história. Nem por isso ia desistir de escrever este artigo, até porque o sonho de ontem impera sobre o pesadelo de hoje. Prefiro rememorar o nosso brioso desempenho na corte dos grandes deste mundo; os nossos amigos, lusofalantes e não só, que em todas as latitudes vibraram conosco; os numerosos compatriotas nossos que de repente cairam em si porque viviam indiferentes ou de costas viradas para as ilhas.

Bom proveito àqueles que so se lembram de Cabo Verde para encher o seu ego… mas dos ingratos não fala este artigo! Antes fala do justificado orgulho que uniu a nação caboverdeana na terra-mãe e na terra-longe! Somos basôfos, mas aí foi merecido, “ken crê podê falá”!

Muito se enganam aqueles que ainda medem uma nação em km² ou em barris de petróleo! Uma nação é do tamanho da vontade e da determinação dos homens e mulheres que a encarnam! Não dirão o contrário os colossos que tiveram pela frente os nossos Tubarões Azuis, confirmando o que ja dizia Pessoa: “Tudo vale a pena quando a alma não é pequena”.

País pequeno sem dúvida, a emigração fez de nós uma vasta nação dispersa pelas sete partidas do mundo. As nossas maiores riquezas tanto podem estar nas ilhas como na terra-longe... e sem emigração não haveria Tubarões Azuis! Longe vai o tempo em que ninguém nos conhecia: hoje come-se cachupa nos restaurantes de Lisboa, o funaná impera nas discotecas de Luanda e Dakar, figuramos nos roteiros turísticos e de wind surf. De peito aberto disputamos a CAN e até a Copa do Mundo! Em Pawtucket canta Cabo Verde Show, Tito Paris em... Paris!

Com os Tubarões Azuis, estamos perante um fenómeno que extravaza dos estádios de futebol, projectando-se retrospectivamente na nossa história de Povo diasporizado.

2. Povo de povos feito

Somos um povo de povos feito, não « descoberto »! A Nação caboverdeana, forjada no caldeamento de povos e culturas, resulta incontestavelmente desta trilogia fundamental: mestiçagem, cristandade, emigração. Mestiçagem étnica, cultural, mas também de crenças e ritos que as leis coloniais não lograram beliscar. Durante séculos a cruz e o amuleto coabitaram num quase perfeito sincretismo ; a prevalência histórica da fé católica acomodou-se do « cola sanjon » no rescaldo da missa em honra dos Santos Populares. Bem mais tensa foi a coabitação inter-confessional, quando chegaram os protestantes e os racionalistas cristãos no século passado, mas o código identitário do Povo das Ilhas continua marcado pelo selo da cristandade! 

David Leite - diplomata
Tal como a mestiçagem e a religião, a emigração é indissociável da nossa existência como Nação. Mas temos tendência em esquecer que emigrar não é senão um justo retorno do destino ; é seguir o percurso inverso daqueles que vieram povoar estas ilhas achadas sem vivalma desde há quatro séculos e meio, e nelas deixaram a sua descendência : brancos do Império, colonos uns, degredados outros ; escravos, mais ainda, trazidos da negra África, entre eles muitos homens livres. Da velha Europa não chegaram só portugueses ; com o tempo, também vieram castelhanos, franceses, flamengos e genoveses. Aqueles que hoje nos acolhem, também aqui foram acolhidos nos idos tempos em que a ilha de Santiago rendia cruzados (1) e patacas (2)como entreposto de escravos e como «portagem» no Atlântico, atraindo, como o mel atrai as moscas, piratas e corsários de prósperas nações!

Mais realista me parece, pois, falar-se de migrações, nos dois sentidos, e não apenas de emigração. Ja no século XVI partiam para os Rios da Guinée os primeiros lançados,maioritariamente judeus e cristãos-novos vindos de Portugal, que estacionavam em Santiago e de la rumavam para o continente. Comerciantes free-lance, «africanizados» no convívio com os « gentios », os lançados ameaçavam o monopólio da Coroa, sendo por isso perseguidos por contrabando… e paganismo.

A menos que o etnónimo « caboverdeano » seja considerado um anacronismo para a época, eu diria que foram os lançados quem deu início à emigração caboverdeana, muito antes dos primeiros marinheiros e harponeiros que três séculos mais tarde haveriam de partir a bordo dos baleeiros  americanos.

3. Linga d’Sintonton ê um sóbura

Neste artigo tenciono tão-somente evidenciar os efeitos da emigração contemporânea. Efeitos culturais, entenda-se bem ! Porque sou daqueles que recusam ver no emigrante apenas o dinheiro que manda, os telemóveis, computadores e outras invenções “último grito” de que às vezes se priva ele próprio para conforto, senão vaidade, de quem ficou.

A emigração não é apenas provedora de divisas, ela é bem mais do que isso : ela é vector de cultura. Contrariamente às ideias feitas, a nossa realidade migratória coloca-nos perante este notável paradoxo: o da partida como factor de preservação da nossa identidade! Jovens emigrantes mostraram ser um veículo formidável do retorno às raízes da nossa música e da nossa língua materna – logo, da cultura caboverdeana, muitas vezes em perigo nas ilhas !

Alguém duvida ? Que vá até ao Luxemburgo ouvir as crianças caboverdeanas falar o crioulo de S. Antão como se tivessem la nascido! Quem diz Luxemburgo diz Fameck, Paris, Rotterdam ou Dakar, e quem diz crioulo de S. Antão diz da Boavista, Santiago ou Fogo.

Se o crioulo não vive circunscrito no universo fechado das nossas ilhas, é graças à emigração que internacionalizou a nossa língua materna. Não é descabido falar de língua internacional quando ouvimos falar crioulo, aqui e ali, em Luanda e em Pawtucket, em Rotterdam e em Roma, de S. Tomé a Lisboa, de Paris a Dakar. Na rua, no metro, na piscina, no supermercado...

As crianças do Luxemburgo são um exemplo para os próprios filhos de Santo Antão que por vergonha não falam o seu crioulo, hoje em franco declínio por influência de S. Vicente onde é objecto de chacota! E não precisaram do ALUPEC para nos mostrar que “linga d’Sintonton ê um sóbura”!

Poucos emigrantes sabem de resto o que é esse controverso “Alfabeto Unificado para a Escrita do Caboverdeano” que ja fez correr tanta tinta! E enquanto os “doutores” dissertam e os políticos decretam, pessoalmente continuo à espera que alguém me diga em que escola da Itália, França, Holanda, América ou Senegal irão os nossos emigrantes aprender o Alupec! Com que professores e com que verbas! Devemos ser prudentes para não aumentar ainda mais a distância que separa os nossos patrícios da terra-longe e da terra-mãe!

A música, mesma coisa: partiu e voltou! Os meus amigos Morgadinho, Djosinha, Toi de Bibia, Chico Serra ou Humbertona vos dirão como é que a morna e a coladêra (ainda mescladas de sambas, boleros e autras cúmbias) foram parar à Holanda com o conjunto Voz de Cabo Verde, formado em Dakar em 1966.

Aliás, raros são os grandes vultos da nossa música que não andaram pelos tortuosos caminhos da terra-longe : Juca Pinheiro, Fernando Queijas, Bana, Titina, Amândio Cabral... Até a nossa Diva dos Pés Descalços teve que ir por esse caminho, porque só é « profeta » em Cabo Verde quem vem de fora ! Seguindo-lhe os passos, jovens como Gil Semedo, Lura, Mariana Ramos e tantos outros trouxeram-nos “de volta” a mazurka e a contradança, e mesmo a coladêra, quando nas ilhas muitos jovens caboverdeanos alinhavam por outros diapasões! A música voltou enriquecida de novos arranjos e novas sonoridades com Tito Paris, Sara Tavares Ramiro Mendes, Mayra, Teófilo Chantre ou Gérard Mendes.

É caso para dizer que a emigração teve um efeito “conservante”. A nossa música tradicional e o nosso crioulo estiveram conservados, por assim dizer, no éter da sôdade e do apego à terra-mãe daqueles pais e avós que educaram os mais pequenos no amor e no respeito da sua cultura de origem. Nessa espécie de “reserva” cultural está patente o contributo da diáspora à preservação da Caboverdeanidade.

Por isso ja não impera a tendência em pensar a partida como prenúncio de desafecto ou apostasia cultural. No rescaldo da independência, a diáspora contribuiu para repor a ordem natural das coisas e repensar a “reafricanização dos espíritos”, de resto negacionista da nossa identidade mestiça.

 4. Uma vasta e rica mundividência

Um amigo violinista da Boavista confidenciou-me ha largos anos que guardava como relíquia um precioso… Stradivarius ! Claro, oferecido por um parente emigrado! Pode até não ser tão « Stradivarius » como pensou, mas a verdade é que os caboverdeanos expatriados não só levaram a nossa música mais longe, como contribuiram para a sua maturação nas ilhas, mandando ou trazendo na bagagem novos instrumentos acústicos.

Mas muito mais devemos à nossa diáspora : devemos-lhe esta cosmovisão da vida que nos ajuda a desbravar os caminhos do nosso destino. A emigração libertou muitos mancebos da guerra colonial para poderem irem buscar la fora o sustento para as famílias desamparadas. A maior parte dos caboverdeanos que aderiram à luta de libertação foram mobilizados em Dakar e em Rotterdam, nos campus de Lovaina e Lisboa, nas indústrias siderúrgicas de Moselle. Escusado mencionar aqui o contributo da diáspora à implantação da democracia em Cabo Verde, tema que fica adiado para outra ocasião.

Sinónimo de liberdade, a emigração tende a incomodar aqueles que mais ordenam : controlada sob o regime de Salazar, com a independência foi objecto de desconfiança e faltou-lhe reconhecimento. Só em 1991 foi suprimida a « autorização de saída » e consentida por lei a dupla nacionalidade.

No entanto, o que não ganhou a Nação independente com a enriquecedora mundividência da terra-longe ! Quando nos países de imigração crioula se instalaram as primeiras missões diplomáticas e consulares, a nossa diplomacia pôde contar com esse « embaixador » natural que é o emigrante caboverdeano – pelo seu trabalho, pela sua conduta exemplar, anónimo que fosse. Ganhámos em imagem e visibilidade com os nossos artistas e desportistas, profissionais dos diferentes ramos do saber, associações e amigos de Cabo Verde em Portugal, França, Estados Unidos, Holanda, Itália, Luxemburgo, Angola, Senegal ou Brasil !

Pouco falado no mundo, Cabo Verde? Quem ouve falar do Brunei ou do Lieschenstein? Do Butão ou do Tadjikistão? 

Mantenhas da terra-longe, 15 de outubro de 2013
David Leite


Nota:
(1)     Cruzado : moeda cunhada graças ao ouro trazido de África no tempo de D. Manuel 1er (1491/1521), muito cotada no mercado cambial europeu.
(2)     Pataca : moeda trazida pelos galiões espanhois, imperou em Cabo Verde nos séculos XVII e XVIII. A Prata  vinha das inesgotáveis minas de Potosi (Bolívia), do México, Chile e Peru.


Enviar um comentário

Whatsapp Button works on Mobile Device only

Start typing and press Enter to search