A propósito do Dia Mundial da Democracia e da Cidadania (ainda) sem dia [texto de David Leite] | Dai Varela

13 de agosto de 2014

A propósito do Dia Mundial da Democracia e da Cidadania (ainda) sem dia [texto de David Leite]


David Leite - diplomata
15 de setembro é o Dia Internacional da Democracia. Foi a 8 de novembro de 2007 que, por proclamação da assembleia geral das Nações Unidas, se instituiu esta jornada de reflexão sobre o estado da Democracia no mundo. Não sei se alguma vez se comemorou em Cabo Verde, mas aqui deixo a minha modesta contribuição nestas “democráticas” reflexões, a desenvolver em futuras crónicas alusivas à efeméride.


1. Direitos humanos e cidadania amputada

Claro que nenhum momento é extemporâneo para abordar uma temática societal que atravessou o tempo e as idades desde a Grécia antiga: a História é feita de movimentos revolucionários em nome do povo e da liberdade. Sob o signo “liberté, égalité, fraternité” se consumou a revolução francesa em 1789; a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão haveria de inspirar as revoluções liberais na Europa, nomeadamente em Portugal no primeiro quartel do século XIX. Mas a cidadania ficou amputada com a exclusão das mulheres e dos chamados “cidadãos passivos” do direito de votar! Em 1793 era levada ao cadafalso a destemida Olympe de Gouges por ter ousado escrever a «Déclaration des droits de la femme et de la citoyenne»! Só em 1944 se abriram as urnas ao voto feminino no país berço dos direitos humanos. Dez anos antes as mulheres ja votavam na Turquia de Mustafá Kemal!

A segunda guerra mundial terminou com o selo de uma nova tomada de consciência, como ficou patente na planetária Carta das Nações Unidas (Nova Iorque, 1945) e na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (Paris, 1948), adaptada e actualizada. Porém, nem sempre a praxis politico-diplomática se traduziu numa ruptura ou mudança efectiva dos iníquos e conturbados destinos da humanidade. Não consta que as as potências coloniais que assinaram a célebre Declaração de 1948 tivessem perguntado à sua consciência: QUE «cidadão»? Como adequar a CIDADANIA aos “códigos indígenas” e outras infamantes leis coloniais que faziam rivalizar a vontade política com a hipocrisia expansionista de certos Estados signatários? Desses, levou tempo para que os mais sensatos abdicassem de seus desígnios hegemónicos em prol da autodeterminação dos povos que traziam colonizados.


2. Quando independência rima com prepotência

Mas se as espectaculares declarações universais do pós-guerra não deram a liberdade aos oprimidos, ao menos abriram-lhes novas esperanças num mundo politicamente bipolar. Mais do que nunca, cercear a liberdade é semear a revolta, muitas vezes confortada pela solidariedade do bloco adverso. Armar e financiar os revoltosos no interior do bloco adverso faz parte das alianças estratégicas da guerra fria, rivalizando de engenho as potências comunistas e capitalistas para expandir as suas áreas de influência. Foi a revolução, eventualmente com recurso às armas, que levou à emergência de muitas nações independentes no período da guerra fria.

Mas com a independência nem sempre triunfou a liberdade sobre a opressão, a democracia sobre o totalitarismo. O mais das vezes o poder apenas mudou de dono, aproveitando fundamentalmente aos “libertadores” e seus feudos, sem que os deserdados da terra se vissem libertos da opressão e das injustiças. Para que vingasse a democracia, era preciso que os líderes pos-independência abrissem mão de suas ambições ou apego ao poder absoluto... mas infelizmente a vanglória de mandar falou mais alto. Genocídios e outros crimes contra a humanidade não foram apenas obra do colonialismo, mas também de regimes autoritários “autóctones”, de um lado e doutro da “cortina de ferro”. Os conflitos internos e as “depurações” étnicas fizeram o resto.


3. Abaixo o Muro!

Do mesmo modo, nem todas as revoluções foram tributárias do sangue do povo martirizado e seus corajosos líderes. Reformas e revoluções pacíficas igualmente contribuiram para mudar os destinos da humanidade: a Índia deve a sua soberania ao pacifista MahatmaGandhi. Malcolm X e Martin Luther King deixaram a sua marca na luta pelos direitos civis dos negros norte-africanos. Gorbatchev foi ultrapassado pela sua célebre Perestroïka (reforma económica) que, ao evoluir para a reforma política (Glasnost), haveria de conduzir, a termo, ao colapso do regime soviético e ao desmembramento do seu poderoso império. A História regista o admirável exemplo do valoroso povo sul-africano que “reciclou” os traumas do apartheid em uma nova coabitação inter-racial, não tanto graças à luta armada do ANC como à “sagesse” e ao carisma de Nelson Mandela, um líder único no seu género.

O mundo livre jubilou quando em 1989 foi abaixo o Muro de Berlim, e com ele foram caindo, como por efeito dominó, as grandes ditaduras ditas “comunistas” ou “populares”, até ao quase total desmantelamento do chamado Bloco de Leste. As ditaduras de direita (militaristas ou burguesas), nomeadamente na América Latina, haveriam de seguir o mesmo caminho.

No advento de uma nova ordem mundial, antigos ditadores adaptaram-se, os espíritos evoluiram, o sufrágio universal e directo veio para ficar – mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Viver com o nosso tempo é participar numa sociedade mais diversa que inscreveu no mármore os direitos e liberdades fundamentais.

Outra história, é a cidadania. Hoje, o debate contraditório encontra espaço na livre expressão e no direito de votar e ser eleito, princípio cardinal da democracia : o mundo nunca foi, ou nunca pareceu, tão democrático. Digo “pareceu” porque se calhar ainda falta percorrer um longo caminho para que a democracia possa rimar com cidadania. Cidadania plena e efectiva, entenda-se bem… em que predomine a equidade sobre os nepotismos, clientelismos e outros cinismos que o sufrágio das urnas pode, ironicamente, engendrar. Para que fidelidades politico-partidárias não sejam a principal garantia para singrar na vida, e ninguém seja estigmatizado pelos seus credos e opções político-filosóficas. Só no respeito da igualdade de direitos e oportunidades se pode imaginar uma classe política plural e diversa, sem a qual a alternância governativa é um logro, e a democracia resulta pervertida.

Fica adiado este tema para um próximo artigo, para não vos maçar muito nesta época de férias e vilegiatura.


Mantenhas da terra-longe, 9 de agosto de 2014

David Leite

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