A diáspora caboverdeana e a cristandade social como vector de integração [texto de David Leite] | Dai Varela

30 de abril de 2014

A diáspora caboverdeana e a cristandade social como vector de integração [texto de David Leite]


David Leite - diplomata
Se pensarmos nas dificuldades que ainda afligem tantos compatriotas nossos na terra-longe, duas coisas constatamos: primeiro, que o problema maior na diáspora é, porventura, a integração, entenda-se bem: plena inserção no país de acolhimento, sem perder o vínculo com a terra-mãe. Segundo, que a problemática da integração deveria merecer maior atenção dos “doutores” da emigração, cuja retórica passa muitas vezes ao lado dos reais problemas dos... emigrantes! Não ha discurso que valha sem acção!


1.      Integração social e confessional

Bem mais do que os discursos, a religião tem tido repercussão positiva na plena integração dos nossos conterrâneos expatriados lá onde lhes é dada essa possibilidade. Nada mais natural: salvo excepções, comungam a mesma fé das sociedades que os acolhem, sendo estas católicas, eventualmente protestantes – em todo o caso, cristãs. Ora, sendo vocação da igreja integrar e congregar os seus fiéis, e sendo a fé indissociável dos costumes, la messe est dite!

Com efeito, uma análise realista, sucinta que seja, permite constatar que a integração resulta amplamente facilitada graças à prevalência dessa espiritualidade partilhada. A presente análise é realista porque baseada na observação e isenta de qualquer tendência  confessional. Afinal a verdadeira  integração emana, antes de mais, de uma vontade recíproca e natural de coabitar, independentemente da religião ou convicções do outro. Por prova, nada como a franca hospitalidade dos nossos vizinhos senegaleses, maioritariamente muçulmanos: os caboverdeanos, no Senegal, sentem-se em casa.

Noutras latitudes, lá onde essa empatia é menos esporádica, as afinidades confessionais têm sido uma mais-valia: a prevalência de uma fé comum, e através dela o convívio com os outros (o pleonasmo “com os outros” é intencional) fazem da Igreja um veículo de socialização por excelência.

1.1. Uma espiritualidade naturalmente compartilhada  

Se o fervor religioso vai cedendo terreno às tentações mundanas da nossa hedonista sociedade, a cultura cristã permanece de mármore na alma, senão nos genes, dos caboverdeanos, sejam eles católicos, racionalistas ou protestantes das mais díspares tendências. Ou não fosse o nosso país o mais cristão de toda a África.

Ora, qualquer pessoa que emigra leva consigo suas crenças e convicções. Nomeadamente, de entre os nossos imigrantes, os de Santiago e Santo Antão, sem dúvida os mais devotos. Permito-me pegar no exemplo da França, que não deve ser um caso à parte no universo cosmopolita da nossa diáspora. Em muitas famílias de Santiago e Santo Antão a religião ja vem de casa, projectando-se na missa dominical, ocasionalmente por alma de algum familiar no mundo da Verdade; ela exprime-se para celebrar os santos populares e nas peregrinações a Lurdes; nos casamentos, baptizados, comunhões e outros sacramentos e liturgias.

Quem diz casamentos e santos populares, diz IGREJA... e diz festa.

Comecemos pela IGREJA: muitos caboverdeanos terão sentido a terra-longe como um espaço existencial culturalmente circunscrito, porventura inóspito... mas pelo menos num lugar se sentiram em casa – na igreja. Quantos, entregues a si próprios, não encontraram aconchego espiritual nas igrejas, de preferência aquelas onde oficiavam sacerdotes portugueses! Ainda que não falassem a língua, puderam interagir com outros paroquianos igualmente sensíveis a uma fraternidade universal(ista) que transcende os idiomas que a veiculam. Um ou outro, mais devoto, fez-se diácono e passou a ombrear os padres nos ofícios, resultando daí uma melhor comunicação evangélica através do crioulo (sermões e mensagens) e do português (leituras bíblicas).

O mesmo é dizer que os nossos emigrantes ja chegavam “integrados”, por assim dizer, e sem sobressaltos de maior, em razão de uma vivência indissociável da fé cristã. Se calhar melhor do que um argelino ou outro imigrante de religião muçulmana, porventura mais predestinado a acusar o choque social e cultural do “dépaysement”. Porquê? Porque, embora familiarizado com a língua francesa, professa uma religião diferente, sendo, por isso mesmo, diferentes a sua cultura e vivência sociais (no caso argelino, 130 anos de domínio francês e uma sangrenta guerra colonial deixaram feridas difíceis de cicatrizar).

1.2. Da igreja à “la fête pour tous”  

Vamos agora à FESTA! Sabemos que os casamentos, baptizados e comunhões não so traduzem uma comunhão de fé como também propiciam momentos de socialização que quase sempre extravasam da esfera familiar. Uma festa caboverdeana tem outro sabor porque o caboverdeano não tem mãos a medir, transbordando, às vezes, para o esbanjamento ostentatório; hospitaleiro como é, para ele todos são benvindos: amigos, vizinhos e colegas de trabalho, caboverdeanos e não só. “Mariage pour tous” conhecemos nós ha muito, ao nosso jeito, bem antes dos franceses!

Essas festas “pour tous”, que muitas vezes decorrem em salões cedidos pelas paróquias,  atestam de uma boa vivência e coabitação na sociedade – ou favorecem-na. A proximidade com a igreja facilita o acesso aos espaços paroquiais, por conseguinte o convívio com outras comunidades e associações, em prol de uma boa integração social e cultural.

2. Fazer o bem sem olhar a quem

Em França, a solidariedade cristã em favor dos deserdados da sorte e da fortuna nunca deixou de lado os que chegam de longe, simples imigrantes ou exilados. Entenda-se “solidariedade cristã” no sentido lato, sabendo-se que os protestantes franceses sempre estiveram na linha da frente contra a exclusão e a xenofobia, ajudando os imigrantes e os “sem-papéis”, através de associações conexas como a Cimade (organização protestante francesa de apoio aos refugiados africanos, ligada a uma congénere americana).

Muitos dos nossos próprios emigrantes, nomeadamente os primeiros a chegar, lembram-se do apoio consequente que lhes foi dado quando, meio “perdidos” ainda, apenas sabiam preencher um formulário administrativo ou redigir uma carta em francês. Hoje bem integrados, não esquecem aqueles que os ajudaram nos documentos ou que intercederam por eles nas prefeituras contra uma humilhante recondução à fronteira. Leigos e presbíteros, católicos e protestantes, uns e outros eram movidos por um princípio cardinal da cristandade: "fazer o bem sem olhar a quem"!
Nessa ecuménica abnegação reside a grandeza da cristandade solidária e da sua obra social, não apenas à intenção dos cristãos mas de todos os carenciados e perseguidos que lhe estendem a mão. Não são católicos, ou sequer cristãos, todos os sem-abrigo e outros necessitados que vão bater à porta do Secours Catholique (corresponde à Cáritas em Cabo Verde) por uma refeição quente ou comida para os filhos. Onde é que vão abrigar-se, em França, os sem-papéis ameaçados de expulsão? Nas igrejas! E a maioria são muçulmanos!

Não é de hoje esta espécie de “direito de asilo” consentido à igreja pelo seu carácter sacro: em Cabo Verde, os escravos ditos “vadios” e outros perseguidos iam buscar abrigo nos presbitérios. Foi na igreja de Santa Helena, em Nice, que 72 caboverdeanos “sans-papiers” desencadearam, em 1992, uma greve de fome pelo direito de serem regularizados. Assistidos por dois párocos, a maior parte dos grevistas saiu da igreja com a promessa de um título de residência.

3. Uma justa homenagem pelo apoio dado aos nossos imigrantes

Um desses párocos era o padre Raymond Fazzi, que por sinal oficiou largos anos na ilha Brava. Em janeiro de 2000, por sugestão nossa, foi o padre Fazzi condecorado com a "Ordem do Vulcão", em reconhecimento dos bons e leais serviços prestados aos caboverdeanos a residir em Nice e arredores.

Como o padre Fazzi, outros clérigos e benfeitores leigos merecem ser distinguidos pelo apoio consequente que deram aos nossos imigrantes. Até entendo que o Estado caboverdeano deveria ir mais longe: seria curial pensar num reconhecimento simbólico à Igreja francesa enquanto instituição, prestando-lhe homenagem na pessoa do seu patriarca.
Abstenho-me de comentar o alcance político-diplomático de um tal gesto, com dividendos seguros para a imagem e visibilidade da nossa discreta comunidade caboverdeana. Mormente se essa homenagem constituir « une première » em relação aos outros países com emigrantes em França – não va algum deles pensar nisso antes de nós e roubar-nos a iniciativa!


Mantenhas da Terra-Longe, 30 de abril de 2014
David Leite
(modestoleite@facebook.com)


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