AmarGurar [Os outros] | Dai Varela

21 de setembro de 2012

AmarGurar [Os outros]

[Os outros] - Esta Voz é insuportável! Credo, nem me quero lembrar do princípio. Porque no início ainda não conseguia parar de a ouvir, por isso briguei, gritei muito, até inflamar as cordas – cordas, meu pensamento voa para meus olhos esbugalhados, meus pés balouçando. Mas minhas forças foram-se reduzindo-se e agora o máximo que consigo é separar aquilo que oiço e reduzir a Voz ao mínimo. 

Esta perseguição que a Voz dedica-me é doentia, fazendo-A esquecer-se de tudo para que Lhe reste mais tempo para me mostrar que não sou ninguém, e muito menos alguém. Se o desejo matasse acho que já não viveria. Ou estaria na prisão; mas nunca um sem vida dentro de uma cela. 

…um único sentimento, uma vontade comum de fazer aquilo em que se acredita… - oiço na confusão dos meus sentidos e amaldiçoo minha incompreensão. 

Silenciar não, mas deixo-a diminuir e penso nos Outros. Havia um, esse sim, fazia-me sentir um pouco menos mal, a sua companhia era como aspirina, mas acho mais correcto chamar-lhe de Amizade. Mas como sempre havia os Outros que não apreciavam a Amizade sincera e, a distância, maldita necessidade. Hoje faz frio. Estranho! 

Depois, aquele sentimento esquisito, o nervosismo, o tudo pensar e nela imaginar, a construção dum futuro a dois feito por um. Foi quando pensei ter ganho a coragem que veio as palavras por pedaço, a súplica e então a explosão que de tão acelerada nem mesmo eu entendia. Depois de forma fluida, na esperança do tesouro no final da Aliança, mas… mas… sobreveio a indiferença, o sorriso de desdém. Então, sobre mim se apoderou o espanto, o desespero, o amor, a esperança, mas por fim, a compreensão de que por quem tinha dedicado meus pensamentos, o corpo e a alma, não era melhor do que os Outros. Confesso que esse foi o momento em que estive mais perto de qualquer forma de felicidade, felicidade nunca antes experimentada, mas também mais perto de me afogar em lágrimas. Era um turbilhão de pensamentos, de lágrimas e de gargalhadas de escárnio suplantadas somente pelo murmurar da Voz. Tentei resistir-lhe, a princípio, mas a Voz acariciava, consolava e dava-me confiança de que o depois seria melhor e a volta do pescoço minhas mãos se enrolaram num último abraço sem adeus as gargalhas de escárnio em súplica se transformaram e eu me sentiria bem melhor… a Voz me garantiu. 

- Agora e para sempre me pertencerás – ouço no martelar do meu cérebro. 


[A intenção] - Pensar, ainda consigo! Mas raciocinar? Talvez não. Penso. Mas não muito, mas penso. E quase sempre o calafrio, o medo. Mas nem tanto o medo do depois, mas um medo de algo, não sei bem o quê, mas acho que é esse medo de não sei quê que me faz lembrar que devo continuar a sobreviver, ou talvez subviver. Mas subviver para quê? Sei que há pessoas que perseguem algo pela esperança, mas acho que ando a tentar fugir de qualquer esperança para que novamente não me faça chorar. Acho que a minha única esperança é nunca vir a ter esperança. Preciso me afastar do Outros. Preciso encontrar refúgio no meu interior. A Voz me chama. Não confiar, não confiar nos Outros, ordena-me a Voz. Hoje sei que já posso confiar Nela, minha única fonte de sabedoria, porque ordena que eu assim faria. 

Preciso pôr um fim a esse sofrimento pois o depois que me espera será muito melhor. Assim me assegurou a Voz e nela confio. Preciso me confessar antes de partir mas para isso preciso confiar nos Outros. Não confiar nos Outros, ordenou-me a Voz. Preciso mostra-lhe a minha lealdade. Eu não tenho pecados, garantiu-me a Voz e nela confio. 


[A clausura] - Tenho-me em mim. Temo mais minha pessoa. Mesmo sabendo que posso me ferir sem magoar-me. Magoar, será que hei-de sentir alguma mágoa depois de me terminar? Sentirei algo? Mas, e se o depois for pior do que o agora? De certeza que não… talvez… 

- …serás a tua presa e o teu predador… 

Não queria ouvir, grito num espasmo mudo. Mas a Voz é um martelo compassado que tinha por alvo a minha cabeça. Saí para a rua. 

Este cansaço que se tinha apoderado do meu corpo e da minha alma tornara meus movimentos mais lentos. A respiração tinha-se tornado tão preguiçosa que já não conseguia encher os pulmões ao respirar. Os meus braços flácidos num peso desconhecido e irreal formavam uma aliança perversa com essa ladeira íngreme, com esse chão de terra vermelha que o vento em rajadas extemporâneas ao encontro dos meus olhos direccionava privando-me de contemplar o olhar perdido no tempo-espaço dum amante, a cara rugosa de unhas sujas da velha que sobre um banquinho repousa o almoço ainda não ingerido sob a sombra da também velha casa de crianças também elas velhas. Sou um peso morto. 

Venci a ladeira. Talvez seja a única coisa que eu tenha vencido; ou que alguma vez irei vencer. Talvez seja por isso que não perco uma oportunidade de aqui vir. Conseguir chegar ao topo após passar por tanta privação, tristeza, mau cheiro é como que uma terapia, a confirmação de que eu ainda cá estou. É vencer. E como prémio por tão valoroso feito, é-me concedido o privilégio de descer esta mesma ladeira, com a sua encosta povoada de prostituição, de violência e de mau cheiro. 

É isso. Não hei-de sucumbir. Não hei-de. Jamais sucumbirei. Há de haver algo a que me possa agarrar. Mesmo que seja uma saliência. Pontiaguda. Estarei de mãos dilaceradas, mas, talvez, sim, de alma salva. Não será uma boia de salvação mas uma tortuosa e espinhosa saliência. Talvez haja algo, talvez. Sei que irei encontrá-lo, só não sei se irei procurá-lo. 

Nesse meu mundo quadrado, povoado por belas modelos, em paredes que não chegaram a ser cobertas pela massa mas sim pela fuligem, meu mundo colorido, meu mundo sombrio as companhias são uma solidão loquaz. Num ponto parado, numa época passada, cinzas do tempo cobrem aquilo a que um dia chamei felicidade. 

- Vinte e três de Fevereiro, sexta-feira, ouço ao passar no meio de Outros a quem o tempo interessa. Decerto não sabem, que para alguém o tempo já passou. Já parou. 


Para continuar a ler a segunda parte do texto click aqui: AmarGurar [A minha primeira vez]

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