[Desafio Criativo Nº4] - (Talvez) Um BOM coração... | Dai Varela

1 de maio de 2012

[Desafio Criativo Nº4] - (Talvez) Um BOM coração...

“Daqui a três dias teu coração parará de bater e teu último suspiro se esvaziará.” Pior que sino de igreja a frase não parava de ecoar na minha sua cabeça. Para complicar aquelas lágrimas não deixavam de rolar, menos mal que tinha sobre controlo aquele grito, que mesmo amarrado na garganta debatia por sair. 

Toda minha vida (grandes vida: 24 anos, 11 meses, três semanas e três dias; quase um quarto de século visto bem; isso é que se chama de azar, receber a sentencia de morte justo na semana do meu aniversario) tinha sido uma pessoa controlada. Não dada a excessos (mas tão pouco serviria para um altar) não ia perder a postura justo no fim. De uma coisa estava segura: minha passagem pela terra não ia ser em vão. Quando de repente... 

- Dr. Santos, será que podia facilitar-me a lista dos pacientes que estão à espera de transplante de órgãos?- Luz no fim do túnel, como amava o meu cérebro. 



-Mas Vitoria isso não adiantara de nada, visto que não terás nem tempo para entrar na lista. – Era nítida a cautela e compaixão na voz do Dr. -Não é um procedimento regular mas farei essa exceção.- Tive que esperar o fim da minha vida para aprender que até das desvantagens se pode tirar proveito. Poderia ter deixado de ser durona e baixado a guarda em algumas ocasiões... É, vivendo e... Não, melhor dizendo morrendo e aprendendo. 

- Não se preocupe doutor, já estou bem consciente disso. Na verdade a minha intenção é outra, vou trabalhar de voluntaria no hospital o “resto da minha vida”. – Nesse exato momento pareceu-me que o lábio inferior do medico pesava uma tonelada (ou foi a minha revelação?). – Relax Dr. Santos, tenho um nariz de palhaço que faz magia. – Pisquei um olho e saí apressada do consultório, tempo era o que menos tinha (muito menos para ver o Dr. Santos apanhando sua boca do chão). 


***** 

-Mas filha tu disseste que não querias saber de festa de aniversario. Como é que vou organizar uma festa desta magnitude em três dias? – Não sei o que seria de mi se não existisse essa Maria. Mesmo resmungando (como sempre) sabia que aquela cabecinha já estava planeando tudo. – Vou ver o que posso fazer, mas não garanto nada. 

- Ebaaa! Já te disse que te amo, que eres a melhor mãe do mundo? 

-Sim, sei... Por essas e por outras que todos me condenam de mimar-te demais. Mas também não podias deixar de festejar a tua “Boda de Prata”. Só não me agrada o fato de ser um dia antes do teu aniversario. Justo tu que sempre foste tão supersticiosa com isso de parabéns antes de tempo. 

- Já te expliquei mamã, é um chamado do Senhor... para um trabalho irrecusável. Deixa os convidados por minha conta. 

- Ah claro, com o facebook isso é tarefa fácil para qualquer um. – Por essa não esperava, tinha mesmo a quem puxar. Pena que não ia ter tempo de madurar também. Plantei o beijo mais demorado da minha existência naquelas bochechas que tanto amava. Talvez para onde eu ia não sentiria tanto a sua falta...Oxalá pudera amenizar a que ela ia sentir de mi. 


***** 

Os três dias passaram voando entre as idas ao hospital e vindas a casa nos preparativos da festa. Era magica a forma como me sentia viva cada vez que recebia um sorriso dos doentes. Era um antidoto a parte racional da minha consciência (que agora ironicamente odiava) que sempre encontrava um jeito de lembrar-me que ia bater as botas. Não abusei do facebook como previu a minha mãe, daí só tirei alguns dos convidados (a maior parte) e enviei alguns convites por cortesia aos amigos fora do país. 

As entregas dos convites foram outros momentos gratificantes. Mais isso depois de deparar-me com as caras surpresas de alguns (por ver-me passado tanto tempo) e ter de explicar a cada um (familiares, ex-colegas, professores, companheiros de trabalho, amigos até inimigos) o porquê do convite em cima de hora. Sempre encontrando uma forma de relembrar o passado, como tinha marcado a vida dessas pessoas e elas a minha. Havia detalhes e peripécias que já nem me recordava. Que bom poder desfrutar dessas companhias uma vez mais. Tinha permanecido nelas mesmo depois de tanto tempo, seguramente se lembrariam de mim uns 25 anos mais. A sensibilidade humana não deixa de surpreender-me, não foram dois nem três a dizer que parecia uma despedida. Bem que sempre m’tive resposta ne ponta d’linga e dizia prontamente. – Hahaha, não isso vai ser no dia da festa. 


***** 

À tarde da festa infelizmente havia chegado e com ela a parte mais difícil: ter de despedir-me disfarçadamente das pessoas que amava. Momento esse que foi seguido ao soprar (alias molhar de lagrimas o bolo-prateado e branco devido à temática de “Bodas de Prata”- com certeza estaria salgado na hora de comer) as velas. 

-Filha não chore, hoje é dia d’festa. Só porque vais trabalhar longe, levianinha a única coisa que não tem solução na vida meu bem é a morte. – Depois disso sim que o nó apertou mais, era de cortar o coração (pior um defeituoso) ver e deixar minha mãe em total ignorância. 

-Dona Maria licença para despedir-me do minha chocolatinha. – Outro mais a quem deixaria o coração partido. Que bem que minha hora estava se aproximando porque não aguentaria muito mais. – Tu sim que sabes apanhar os outros desprevenidos. Pensaste que bo t’bem livra d’mi assim, muita mentira. 

- Kretcheu como queria que fosse só isso... Toma este presente e para ti, mas promete-me que só o abriras quando o padre te diga. 

- Tua festa e recebo presente. O que é um anel de noivado? Por isso o padre esta aqui? Um numero, de que? 


- Hahaha, curioso! Tinhas de abrir, mas já vais saber. Já que não posso deixar-te o coração porque como sabes é meio doido. – Ivandro calou a minha boca com aqueles beijos de marca registrada. 

-Mas mesmo assim existe muito amor nele, eu que o diga. Falando nisso não me disseste qual foi o resultado das análises. 

-Melhor ajuda-me com a mala porque já estou atrasada. Logo falamos disso. - Que bom que os homens são desligados, mas agora desligar-me daquela montanha de presentes em cima da cama sem abrir é que tão pouco estava sendo fácil. Até kel prigose do meu irmão estranhou, tive abrir um e mentir que quando voltasse abriria todos, mas que ninguém atrevesse toca-los exceto mamã. 


***** 

- Dona Maria será que posso ler uma pequena carta que a sua filha deixo-me encarregado?- O padre estava serio como se de um altar tratasse. 

- Klar Padre Fernando, mas minha filha que inventa, não podia fazer ela mesma o discurso. Minha gente prestem atenção, por favor, Sr. Padre vai ler umas palavrinhas dnha mnininha. 

- Boa tarde minha gente. Em realidade é algo serio... Tratasse do testamento, uma despedida geral de Victoria. Mas ela deixou a cada um uma carta. - Houve um silencio total até o DJ parou a musica. 

- Mas Sr. Padre como assim testamento?- Mamã calou-se em seguida, nos olhos dela nasceram lagrimas de compreensão. Seu sentido de mãe havia entendido meu súbito interesse pela festa e com o coração apertado pediu que o padre continuasse. 

“Meus queridos, obrigada pela sua presença na festa da minha vida. Vários sabiam do meu problemático coração, mas nem eu esperava que ele me falha-se tão cedo (sorte de uns hehehe). Não adiantou dá pa forte porque há três dias atrás o medico disse-me que não passaria de hoje. Por isso fiz questão da presença de todos na minha festa de despedida disfarçada de aniversario (a obrigada pelos presentes, mamã com certeza saberá o que fazer com eles, sempre sabe). Mãe espero que Deus me perdoe por ter escondido isso de ti (senão ao menos que os órgãos que me estão extraindo para doação neste momento sejam atenuantes), só queria atrasar tua dor. Vivo ao saber que meu coração de forma torta como eu dará (ainda que indiretamente) vida a outros. 

P.S.: Kretxeu eu sei o quanto me pediste e querias uma filha nossa. O numero é do geneticista com quem te deixei um ovulo de presente (talvez de nossa união nasça um BOM coração)... Se quiseres serei eternamente grata.” 
Ah ia-me esquecendo de contar, dias depois minha mãe soube que os resultados das análises não eram os meus 


OBS: este texto é da autoria de  Margareth Gonçalves Lima  e faz parte do Concurso de Escrita Criativa


  1. Um texto intererssante e plena de comoção... Convém encorajar a autora para continuar a nos deliciar com outros lindos textos como este...!

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